Araripe Coutinho, retrato de um artista múltiplo

Araripe Coutinho, retrato de um artista múltiplo
“Se pudesses, meu Deus, me carregar nas costas / Qual criança num teatro de bonecos. / Se pudesses, meu Deus, / Ver o quanto pasto desde o dia em que me deste / Consciência. / Se pudesses ver o encarnado que fica / O meu quarto toda noite quando deito / E choro”…
O poeta Araripe Coutinho, autor dos versos que abrem esta homenagem, nos deixou na manhã de terça-feira, dia 09 de dezembro de 2014, aos 45 anos. Faleceu em sua residência, frente ao rio Sergipe, em Aracaju, após um enfarte. Soube da triste notícia através da artista-plástica Márcia Guimarães, que me escreveu desolada. Perdeu a literatura brasileira e perdemos nós, que não poderemos mais desfrutar do prazer de sua companhia.
POR EDUARDO WAACK
Nascido no Rio de Janeiro (RJ), em 13/12/1968, ele residia na capital
sergipana desde 1979. Filho de Moacir dos Santos e Maria de Nazaré
Coutinho, publicou treze livros de poemas, entre eles “Amor Sem Rosto”
(1990), “Passarador” (1997), “O Demônio Que É O Amor” (2002) e “Como
Alguém Que Nunca Esteve Aqui” (2005). Foi uma pessoa autêntica e de
personalidade forte, extrovertida, polêmica, controversa, exagerada e
apaixonada pela verdadeira cultura popular. Seus versos finos são repletos de erudição e amor, erotismo e ternura. Religiosidade profana. Membro da
Academia Sergipana de Letras, foi sócio fundador do jornal O Capital, há 29
anos, junto com a jornalista e cineasta Ilma Fontes. Em 2009 publicou uma
coletânea comemorando seus vinte anos de carreira, evento que reuniu
autoridades e amigos. “Eu não deveria ter nascido. Quando vi, estava eu aqui, meio lama no imenso mundo retratado, cheio de quadrúpedes rondando a minha sala. Pedi para voltar. Gritei muito, antes de ouvir uma voz dizendo: desça e arrase!”, recitou Araripe no lançamento do livro “Obra Poética Reunida”.

Escreveu a peça “Eu e Ela” apresentada por Clodovil Hernandes no Teatro Brigadeiro, em São Paulo, e conviveu por vários anos com a escritora Hilda Hilst em Campinas (SP). Por oito anos, foi diretor da Biblioteca Municipal de Aracaju. Em 2011, uma série de fotos feita por ele no Palácio Olímpio Campos (que foi sede do governo estadual e hoje é museu e patrimônio histórico) provocou polêmica. Ali, realizou um ensaio sensual e foi fotografado seminu. As fotos ilustrariam um livro lançado em 2010 mas o impacto deu-se após as imagens vazarem na internet. Este episódio rendeu a ele bastante repercussão e uma brilhante participação no Programa do Jô Soares. Pouco antes de falecer, em outubro, participou da homenagem à escritora Maria Cristina Gama, no Espaço Cultural da Assembleia, interpretando a canção “Je Ne Regret Riem”. Vinha chamando a atenção das autoridades, imprensa e comunidade pelos seus protestos realizados sob o viaduto Aracaju-Barra dos Coqueiros, junto de artistas famosos e bandas emergentes, com muita música, poesia e performances — ele não aceitava o número de jovens mortos em seu bairro Industrial, sua cidade, seu estado e país.

São suas estas palavras: “A internet desvendou no Google tudo o que busquei nos dicionários a vida inteira. Enciclopédias, cabalas, mapas e posições assimétricas das estrelas. Tudo inútil. O homem só aprende a morte e o silêncio.” Atual e instigante, sua obra merece ser mais conhecida, estudada e declamada no Brasil e exterior. Em 30 de janeiro de 2019, em comemoração ao cinquentenário do poeta, foi aberta, com curadoria da cantora Antônia Amorosa, a exposição “No Coração De Alguém Que Esteve Aqui”, na Galeria Jenner Augusto, junto à Sociedade Semear, bairro São José, em Aracaju. Resgatando o gênio controverso, prestativo e debochado, ali foi reproduzida sua casa, seu modo de ser, sua desorganizada organização. Grande entre os grandes, humilde junto aos pequenos, dono da verdade, eterno aprendiz. Assim como viveu, ele partiu, anjo rebelde, valente protetor dos jovens e marginalizados, deixando em nós uma amarga sensação de vazio. Aproveite a eternidade e olhai por nós, querido amigo e fiel irmão das letras vivas!
Retratos de Araripe
“Na terça-feira, 09/12/2014, data do falecimento de Araripe Coutinho, o deputado federal André Moura discursou em Brasília em homenagem ao poeta e jornalista que tanto de si deu para a sociedade sergipana e brasileira. Cinco dias antes ele havia caído da própria altura ao sair de uma festa e foi levado de volta ao hospital — de onde havia fugido para ir à festa, internado com dificuldades respiratórias. Através das redes sociais, disse ter quebrado três costelas e tido uma parada cardiorrespiratória. Sucessivas paradas foram relatadas, mas ele não se permitia ficar parado, hospitalizado, paciente rebelde. Araripe teve ligação com poetas de todo o país, especialmente com Hilda Hilst, com quem morou em Campinas, e considerava sua madrinha nas letras. Outras madrinhas ao longo de sua vida: Ilma Fontes, Lânia Duarte, Antônia Amorosa, Maria do Carmo Alves, ajudaram-no na superação de dificuldades corriqueiras. Com certeza a arte de Sergipe e brasileira ficam desfalcadas da sua presença, insubstituível. Amigo de muita gente, ele tinha uma energia contagiante, e é dela que sempre lembraremos como marca de sua personalidade e estilo. Como Arthur Bispo do Rosário, ele disse: ‘Eu vim’, e veio para ficar.” — Ilma Fontes, escritora, cineasta e jornalista / Aracaju (SE)
“Escrevendo sobre o poeta, considero alguns adjetivos referentes, como tempo, velocidade de tempo, força expressiva, força poética e impacto. Assim como a própria persona, não é uma poesia tão fácil assim. Tanto na sua concepção, quanto na assimilação. Vida e obra intensa e multifacetada. Um verdadeiro anarquista da palavra em versos. De uma liberdade avassaladora. Infiltrado no sistema, circulava como poucos. Seja como colunista, jornalista ou poeta. Uma figura ímpar. Assim era Araripe Coutinho. Detentor de um DNA poético bem específico. Dizem que quem herda, não rouba. Assim soube aproveitar a estreita relação com a poetisa Hilda Hilst. O primeiro contato que tive com a obra do poeta passarador causou-me um certo desconforto. Não por falta de qualidade, muito menos força lírica. Mas pela força dos versos. Conhecendo o Ara há bastante tempo o chamava assim, mas ele não gostava e sempre gritava: “Eu não sou Ara, Anderson Camilo! Eu sou Araripe Coutinho! Não sou Regional! Sou Universal!”. De fato, hoje acredito que era e continuará sendo, por bastante tempo.
Sua obra ainda não foi o suficientemente revista. Pessoalmente sempre o achei bem à frente do seu tempo. Talvez não seja essa a razão da sua breve passagem entre nós. Porém a força e a intensidade que criou, consumiu e foi consumido pelo seu próprio tempo não nos deixa dúvida da força e amor que tinha pela poesia. Isso fica claro na sua bela obra ‘Sal das Tempestades’. Ali o poeta deixa exposta as vísceras do próprio humanismo. Livro denso e intenso. No momento em que li senti uma certa aproximação com um elemento que não havia percebido a priori na obra do artista. O homem, os seus sentimentos e angústias saltam do pano de fundo da própria obra para a primeira pessoa da narrativa. Ali, o poeta assumia o próprio eu. Havia urgência, carência e muita necessidade. Ilustrado pelo artista sergipano Jamson Madureira, ‘Sal das Tempestades’ torna-se uma obra sem precedentes até então na poesia sergipana. Talvez brasileira. O fato é que o poeta partiu muito jovem, tanto para as suas pretensões, quanto para as infinitas possibilidades que o seu escrito tornara possível.
Mesmo com toda a sua excentricidade ele sempre foi um grande operário das artes, tanto quanto a jornalista, escritora, roteirista e cineasta Ilma Fontes, parceira e incentivadora. Às vezes a via como uma certa Mãe do Ara. Uma mãe que ele não teve. Isso fica bem claro, desde os tempos de sua presença no resistente jornal O Capital, que talvez tenha sido a sua primeira escola libertária. Apesar de achar que o tempo não tenha sido tão generoso assim, não podemos negar que ele foi muito bem aproveitado pelo inquieto e solitário poeta que passou por aqui. Porém, na sua obra, fica a impressão de que ela acabou de chegar. São proposições latentes, atemporais, necessárias como toda poesia que brota bem do fundo da alma.” — Anderson Camilo,artista visual, produtor cultural, educador e diretor de criação e marketing da Então Pronto Produções / Belo Horizonte (MG).
Quatro poemas de Araripe Coutinho:
— I —
Adentro avesso e o reto
É vulva aberta, mucosa
No inferno de nossos dentros.
Espeto o desejo como quem
Procura o risco, o medo, a coragem
De avançar perdido por algo que sei
Desde a infância, aurido.
Homem é sempre treva. Mas pode
Trazer o mundo para dentro de nós.
E a arte nessa selva é sempre
A morte.
Inventor de muros. Paredes altas.
Consumo de felicidades mortas
E a maçã no escuro é Clarice
Sem decifrar GH, seu mito.
Estou apodrecendo como
Quem constrói uma catedral
Sem missa. Assim rendido no portal
Avanço sempre que me vejo.
Sou um mesmo homem
Que não conhece deus, mas que o ama.
Seria o amor assim? Este nunca vir.
Sim. É desejo o que me mata.
São negros e azuis e o quarto cabe
Cada um com seu poder.
Eu sempre rendido.
— II —
Aparecer no espelho e dizer: morra!
Este é o meu tempo. Fantasmas visitando
O quarto escuro. Uma mulher de unhas longas
Tez avermelhada, sobrancelhas de chagas
Mal dormidas. É a morte. Ainda que o dia
Amanheça a noite nunca chega.
Estou tateando a ogiva de um amor sem matéria.
Carregando o andor de um santo sem fé.
É minha esta prece. É vasta, solene, quase muda.
Entendo a morte como a um copo de café.
Sirvo as compotas de frutas uma a uma.
É jambo, ameixas e morangos.
Nenhum sabor
Decifra esta ira. Estou incendiado
Deste amor.
— III —
Trazes nas mãos o verso adormecido
que ao poente desce murmurante
trazes também a procissão dos atos
no amarelo ácido dos instantes
Quando circundam frestas e anseios
no peito pardo da mulher calada
águias e feras, vultos permanentes,
insistem em despertar a madrugada
Enquanto a vida acaricia a morte
vertidas lágrimas cristalizam a noite
espaços vagos por perdido amante
nutrem de solidão a cavalgada
E nos segredos dos cofres dos amores
a noite enclausura suas vítimas
no coito da manhã assassinada
Amores intermináveis vão rolando
na areia namorada da saudade
e beijos tombam em hálitos venenosos
beijando a face do horizonte amado
E o verso despe-se às escâncaras
mesmo existindo sentimentos amordaçados
e caem pétalas das orquídeas vespertinas
enquanto em silêncio fecham pálpebras
no útero da manhã que ainda dorme.
— IV —
O amor jaz no cacto do jardim
e cada espinho exposto à luz do corpo
é um pedaço morto de cada um de nós
o corpo é feito de taças
— cheias e vazias —
vitrais de luas engolindo a noite
pousando gozos nas sombras das ruas,
Além das veias todo amor é sangue
sangue de um sorvete de solidão amarga
assim morrendo
assim tão suave inflama
dentro da alma
além da madrugada.
Rendidos já não buscamos a enseada
o sorvete que falo
vem das almas
das almas das mulheres nunca amadas
que sempre pelas taças
vertem lágrimas
e bebem gotas de amores mortos.
